domingo, 30 de janeiro de 2011

Vicio da regressão


Uma mesa de chá flutuante. Duas cadeiras na mesma altura. Biscoitos, torradas, cream cheese, aveia, mel...

Sentadas, eu e minha consciência conversávamos no fim da noite. Estávamos ambas, abismadas sobre falta da malicia costumeira. Uma espécie de pureza nos rondava e por isso era como se a perspectiva de vida tivesse regredido uns quinze anos.

O olhar sexual estava desinteressado, a paciência e esperança restauradas, a iniciativa era amistosa e compreensiva, o desejo era involuntariamente puro. Era como se eu tivesse agindo e tratando de todos os meus assuntos, com a opção de resolvê-los com a mesma calma de quando tinha quatro anos: querendo ser amiga, demonstrando carinho, satisfação, sem grandes anseios sobre as pessoas, com um aspecto brincalhão, compartilhando informações coloridas, escutando o som e o timbre da voz, dizendo sem jeito, um pouco canastrona, desavergonhada, sem maldade, indiscutivelmente infantil maneira de se comportar.

Acho que tá ai um segredo pra se sentir bem, pra tirar a culpa da desconfiança e ferocidade do mundo adulto. Uma semana sem esse comportamento impessoal, sem essas cerimônias, sem esses julgamentos, sem a malevolência. Digo-lhes durante esse chá sonhado, flutuante na madrugada, que tem me feito muito bem esse vicio da regressão. Eu tentei esse mundo adulto de mais, e só vi dor e sofrimento. Não estou ignorando o mundo real, estou mudando a maneira de vivê-lo. Afinal se gentileza gera gentileza, mudança gera mudança. Então mudando e melhorando, simplificando o eu, simplificamos o mundo. É uma experiência com validade reconhecida.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Quebra na sequência

Pausaremos a questão das lendas de Parada Angélica, para dar atenção a outros assuntos.Isto é apenas uma garantia à vocês, nossos contos continuarão em breve, talvez menos sequenciais.Vamos desligar vícios além deste bairro e depois voltar, como bons filhos pródigos.Janeiro foi o mês de inaugurar essa seção, apenas um pontapé inicial dentro das próximas ilustrações que virão.
Como esse lugar é esquecido e jogado ao mundo, terei o prazer de trazer fotos dos lugares, e quiçá, dos personagens que caminham na hibridação real/ficcional.

Aguardem!

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

O Cuxichó

Existe um lugar, ainda na Rua dos Lírios, que é quase uma favela em um único terreno. Um monte de barracos e casas amontoadas e ao centro uma mangueira gigantesca. Se isto fosse um conto no centro do Rio, chamariam aquilo de Cortiço, mas é muito mais favelizante do que o velho modelo de moradia. E nem na época de ouro –se é que Parada Angélica teve uma – nada aqui seria um cortiço como o do Azevedo.

Quando minha avó ainda era viva, as casinhas já existiam. Ali conviviam e, até hoje, convivem crianças, galinhas, adultos, cachorros e o que mais tiver vida! Todos da mesma família ou agregados como maridos, esposas, cunhados, enfim... Adjacentes na linha parental. Talvez por ser um aglomerado sem inicio e nem fim, onde a higiene e os cuidados de saúde básica eram duvidosos, a minha vovózinha chamou esse lugar de cuxichó.

Eu nem sei se a grafia é essa porque esse auge do neologismo era apenas falado, e tão pouco sei seu significado exato. Contudo, ao olhar aquelas casinhas, o buteco na frente, as lonas plásticas, o tijolo sem reboco , os basculantes sem vidros, eu sem duvida digo “Ali é o Cuxichó”.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Béia

Eis que esta senhora que vou descrever é uma das figuras mais emblemáticas desta minha terrinha. Luzia Maria da Conceição- pouco se sabe se este é o seu nome de fato - desde que se conhece por gente é chamada por Béia, a senhora de idade também duvidosa, mas aproximada em 88 anos, sempre me pareceu literária de mais.

Filha de um trabalhador da linha férrea, que às vezes atacava de jogador de futebol e de mãe lavadeira, viveu em Pau Grande na época do Garrincha. Nunca se casou, diz-se virgem, mas conta que ao dançar bem juntinho no baile já descobriu “o calor” de um homem.

Negra, magra, cabelo duro e sempre pintado, olhos marejados pela catarata, ela tem em si um caráter interessantíssimo. Tampando a boca envergonhada com o sorriso e com dentes maltratados pelos doces da terra, ela vem contar sobre um ou outro que morreu e ela foi ao enterro- porque pra ela ainda é época dos grandes eventos serem os velórios! É como uma viagem ao passado, ela ainda diz que esse morto ”abotoou o paletó” e indigna-se pelos parentes nem chorarem muito. Além de papa-defunto a senhora é engraçada com o linguajar simples coloquial e a fala rápida - quando aqui cheguei, mal podia entender as coisas que ela dizia. Ela deixa de herança para aqueles que convivem com ela alguns bordões como “eu mesmo acho” quando dá sua opinião,quando diz que fulano é “nego preto que nem eu” não é por mal e sim percebendo a mudança na posição do negro na sociedade, quando fala aos homens velhos os trata por “sinhô”, e nunca diz tchau e sim um saudoso “ ’té logo”.Se fico muito tempo sem ir prosear com ela, a Béia logo fica brava, diz sem pudor que sou “filha-da-puta, cachorra que não liga pra eu!”.

Por falar em cachorro, ela já teve muitos : o Salgueiro, Pingo, Beethoven... Todos eram vira-latas, os atuais são o Nú e o Sem Calças.Me pergunto se com foi o tempo que ela criou essa liberdade para nomear seus animais. Já criou galinhas, mas parou porque já não tem mais idade pra mexer com aves ariscas que nem as vadias galinhas.

Tem um quintal farto de árvores frutíferas, freqüentemente aparece para dar a gente jabuticabas , mamão, banana da terra, laranja lima, limão galego e pra comer no almoço tem a própria mandioca e as folhas de louro pra temperar o feijão. E como cuida das plantas e da terra! Ela areja a terra com a enxada, capina aonde tem mato, rega as que dão flores.Que vivaz!Eu nem aos 20, teria tamanha disposição. Dorme cedo e acorda cedo. Escureceu e já não se tem mais noticia da Béia, e antes de amanhecer ela já está de pé.

Vive sozinha na sua casa e como toda senhora, tem medo que aconteça algo durante a noite. Receio de que entrem no quintal para roubá-la ou que algum bandido lhe faça mal. Tem medo de morrer sozinha e padecer despercebida. Felizmente, para lhe suprir as demandas de solidão tem o Bolinha, um vizinho que ajuda quando tem “serviços de homem”, como obras e reparos na casa. Tem a Glória, cuja intenção é duvidosa, mas sempre ajuda com as pendências da casa como as compras e também lhe pinta o cabelo, além de levar o Everton, o seu neto , pra que alegre o ambiente da velha. E claro, tem a minha família, que por mais de 30 anos acompanha a trajetória da negra Béia, somos vizinhos desde que a minha avó comprou o terreno aqui de casa.

E religião?Não tem uma só. Essa senhora está em todas! Se a chamam pro terreiro, ela vai. Se tiver show evangélico na praia, ela vai. Se a missa é na paróquia com o padre italiano, ela vai! No quesito respeito e fé, ela é vanguardista pra alguém da sua idade.

Seu maior defeito e maior qualidade é ser muito boa pessoa. Eis que um dia, ou melhor, uma madrugada seus vizinhos e parentes de consideração, estavam fazendo uma festança desde as duas da tarde daquele sábado. A festa estava tão intensa e a pegação tão avassaladora que uns pombinhos derrubaram o muro de concreto pronto que separava os terrenos! Para susto tremendo da nossa Béia, que já havia se recolhido desde as sete da noite, o estrondo foi colossal! Um ano depois e o muro ainda está a baixo porque ela fica sem jeito pra cobrar os taradões da festa.Pobre Béia.Eu a amo.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Zé Baiano.

Próximo a linha férrea existe uma sequência de ruas com nomes de flores, um clássico que mostra o quanto este lugar podia ser mera ficção, mas não é.
As digníssimas eram as ruas Ipê, Lírios, Dália, Tulipas.Esse jardim florido em asfalto, pavimentado há não mais do que 7 anos, fica próximo a divisa com a parte 'favelizada' por assim dizer.Mas este não é o ponto agora.
O momento trata do Zé Baiano. E quem é ele?
Na rua dos Lírios desde 1976, mora o retirante nordestino, José Matias da Silva, o Zé Baiano. Ele seria só mais um, se seus hábitos não fossem tão irritantes e as vezes peculiares.
Casado com Rita de Cássia da Silva, desde 1991, ao Zé, que mora num barraco feito de tijolo, madeiras,papelões, palafitas e toda tralha possível, lhe faltam muitos dentes na boca, dinheiro, conforto, paz, mas jamais lhe falta cerveja.Tem um filho tão feio quanto ele e a mulher, o Reinaldo.O menino já deve ter 10 anos de idade e ainda anda de cuecas pela rua e frequentemente está com algum membro engessado. Segundo dizem, tem problemas de retardo mental e epilepsia causados, muito provavelmente, por alcoolismo na gravidez e por azar que todo pobre carrega nesta terra angelical.
De qualquer maneira, o Zé Baiano é uma figura marcante em Parada Angélica, primeiro porque já montou seu camelô em praticamente todos os lugares pra tentar vender coisas velhas e segundo porque ele é um dos maiores vigilantes da vida alheia que a minha presença já teve o contato.
As 6 horas da manhã, o Zé está com a sua cadeira de praia em baixo de uma árvore na calçada em frente ao terreno aonde fica o seu barraco, dando bom dia a qualquer um que passe.E permanece ali até que seja insuportável o calor e o sol.
A habilidade do baiano, não se restringe a fofocar a rotina alheia, ele também é capaz de vender qualquer coisa possível.Acho que até hoje ele só não vendeu a alma e a sua família, mas acho que de tudo aconteceu nos seus recém completos 60 anos de vida.
Uma vez deu-se que, em mais uma atitude empreendedora, ele pegou umas madeiras velhas fez uma barraca e ali decidiu vender salgados e caldo-de-cana. De súbito, todas as galinhas que ciscavam na vala perto de sua casa sumiram para que as coxinhas pudessem ter seu lugar na vitrine de salgados...Quem não pareceu feliz era o Daíl, dono das galináceas transformadas em quitute.
Um dia a banquinha velha, amanheceu vandalizada e foi o fim de mais uma das tentativas do Zé pra ganhar o dinheiro das cervejas dele e da Rita.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

contos e lendas de parada angélica

Parada Angélica é um lugar quase simbólico na vida histórica da região metropolitana do Rio de Janeiro, tão importante que nem existe no mapa.
O local é provinciano: tem uma igreja matriz, uma praça, mercados, farmácias, salões de beleza e uns 1500 habitantes- não sei se esta contagem inclui os moradores da area favelizada.
O lugar não tem charme, faltam muitos serviços, então, lhe restou mesmo ser apenas uma parada pra quem passa em direção a região serrana. Angélica talvez tenha sido nos tempos de fundação, mas não nos anos 2000.
Contudo, nesse cantinho, existem coisas que até Deus duvida.É o retrato do Brasil: desigualdade, esperteza, corrupção, honestidade, fofocas, amizade, amor, samba, nordestinos, americanos, franceses, preguiçosos, trabalhadores, malucos, feijoadas,politicos, botecos, crime, trafico e felicidade.
Em plena baixada fluminense, vamos encontrar lendas e contos brasileiras que nem mesmo "O Guarani" foi capaz de mostrar. E os vícios? Ah, muitos deles serão expostos e quem sabe desligados.Mas para deleite de nós todos, eles apimentam ainda mais essa falta de vergonha que só Parada Angélica poderia ter.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O dia em que prostitui meu pé

Estava trabalhando no centro da cidade, passava pelo Largo da Carioca com minha pasta em baixo do braço em mais um episódio cansativo da minha vida de estagiária até ver um tumulto.Percebi que era a gravação de uma reportagem. Aproximei-me com alguma curiosidade e vi que não era nada de mais, o repórter estava fazendo algumas brincadeiras e tirando sarro dos trabalhadores ali.

Afastei-me um pouco decepcionada por ter desviado o caminho, entrei pelo convento para pegar a Almirante Barroso, quando uma mulher me abordou. E que mulher!Devia tem uns trinta e cinco anos, os mais bem vividos que uma mulher poderia ter...

-O que o povo não faz para aparecer na TV, né?

-É sim, só porque é pro Fantástico e a galera gosta...

Que coisa idiota “a galera gosta”! Fantástico é uma das coisas mais depressivas do domingo...

Continuei andando rápido, não por pressa, mas por algum nervosismo.

-Então, érr estive aqui calculando e você deve calçar uns 35, né?

-Nossa! Como você sabe?

-Bem, é que eu sou designer de sapatos e trabalho com isso.

-Genial, acertou em cheio.

-Foi um pouco difícil por conta de o seu tênis ser um pouco bruto. Eu estou trabalhando numa campanha de pés femininos. Você sabia que muitas modelos, como a Gisele Bündchen, têm os pés feios e precisam de dublês?

Tocar nesse ponto de que as mais bonitas precisam de mortais como nós, ela estava jogando sujo.

-É?

-É sim... O pé dela é magro e com os dedos um tanto tortos, sem muita simetria...

-Nossa.

-Pois é. Então, eu estou pesquisando e muitas mulheres não se sentem satisfeitas com seus pés, que nota você daria para o seu pé?

Eu jamais dei atenção a isso, não é uma coisa que se planeja: avaliar partes do seu próprio corpo!

-Bem, nunca tinha pensado nisso, mas eu não gosto muito do meu pé porque ele é meio gordinho e eu não posso usar alguns tipos de sandálias porque ele esparrama... Acho que daria uns seis, pra ficar na média...

-Seis?Não é mal...

Chegamos à calçada em frente ao Liceu e fomos interrompidas por um carro que saia para a Rua Senador Dantas.

-Eu estou fazendo uma campanha de pés femininos em prédios comerciais aqui do centro. Se puder ver aqui tenho algumas fotos na minha maquina.

-Estou com um pouco de pressa, você pode me acompanhar?

-Não, isso a gente tem que ver com alguma calma e atenção...

-Ok, por favor, então continue, tenho alguma pressa...

-Você se importaria de mostrar um pé seu?

-Bem, acho que não esse tênis é fácil de tirar, olhe...

Por que eu fiz isso?Me prontifiquei assim?

-Hum, mas que pé lindo! Seu pé é lindo, garota! Você sabia que muitos homens tem fetiche por pés?É uma tara muito comum e eles se importam muito com isso...

eu já vi alguns filmes, tem até um com o Eddie Murphy...

Quem lembraria do Eddie Murphy? Eu e o meus comentários sempre muito pertinentes e adequados...Tinha uma mulher linda ali, alô?

-Sim, sim... Veja.Estas fotos eu consegui com pessoas que abordei na rua assim como você e que fizeram na amizade.Mas eu converso e pago cachês de até duzentos reais para fotografar pés.Você se interessa?

-Claro, mas agora é um pouco complicado.

-Eu te pagaria cinquenta reais para você me emprestar quinze minutos do seu tempo.

Cinquenta reais em quinze minutos? Eu trabalho um mês por um salário mínimo...Fazendo uma regra de três...Éh...acho que vou lucrar com isso!

-Bem... Acho que tudo bem, se for rápido, preciso voltar à Lapa...

-Certo então siga-me.

Andamos por uma rua, e depois outra, viramos uma esquerda e entramos num prédio que tinha algumas catracas ai descemos um lance de escadas rolantes e até chegarmos num lugar com elevadores e algumas escadas. Ela foi falando do projeto dela e de outras coisas que tentassem me assegurar da veracidade do trabalho. Entramos pelas escadas e subimos uns três andares.

-Está bem, eu não gosto de fazer em andares muito baixos, porque eles são mais movimentados, mas aqui está bom. Você pode tirar o tênis e a meia e eu vou dizendo o que tem que fazer...

Segui as instruções e tirei o tênis, logo, tive algum receio. Já estava no fim da tarde e eu estava desde as dez da manhã na rua com aquele tênis e justamente naquele dia tinha feito um calor enorme. Minha meia era preta de algodão, então meu pé estava suado, provavelmente com chulé e cheio de pelos pretos da meia... Uma situação horrorosa, limpei com a meia...

-Ah eu queria ter tirado uma foto com ele sujo!

-Sinto muito, é que achei que estava pouco apresentável...

Tirou uma, duas, três, quatro fotos...meu pé estava fotografado por inteiro, de todos os lados...Até que para minha surpresa ela virou e disse:

-Ponha o pé no meu rosto.

-Como assim?

-Coloque!

-Assim?

-Sim, passe o pé no meu rosto e tome a câmera e filme.

Então a mulher misteriosamente começou a lamber e a chupar meu pé, meus dedos e adjacências –sapatanas-péziana-pénianas- . Meu Deus que louca! Que tarada! Maníaca! Que linda! Sensual! Que estranha!

Eu sabia que era treta essa história de projeto de moda design de pés! Ela fazia vídeos sensuais de sexo oral com pés!Ahhhhhh!Mas eram cinqüenta reais com uma mulher excentricamente linda...

Prostitui meu pé! Foi uma das vendas mais esquisitas que eu realizei... Sinceramente nem o fato dela ser atraente nem de me remunerar conseguiram que eu relaxasse diante da situação. Sem um encontro, um flerte, nem nada... Encontrei uma louca na rua e deixei ela chupar meu pé!

Peguei um taxi e voltei ao trabalho, com a lembrança do dia em que prostituí o meu pé.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

velho teddy



“Achei você no meu jardim
Entristecido
Coração partido
Bichinho arredio

Peguei você pra mim
Como a um bandido
Cheio de vícios
E fiz assim, fiz assim”

Minha herança:Uma flor – Vanessa da Mata.


Procurei todos os defeitos da terra pra marcar a personalidade dele. Defeitos que pudessem dizer que ele não era melhor que eu, que justificassem que ele jamais me passaria para trás...

Vocês o escolheram... E a mim sobrou os restos, as formalidades, as raspas da amizade.

Antes nem com isso eu me interessava, queria era outro tipo de atenção, outro tipo de amor, mas notei que isso seria impossível de se conseguir de uma dona confusa, como ela, era como tirar leite de pedra.

Tanto esforço, tanto zelo, de que me servem?

Fiquei obsoleto, fiquei pra depois.

Não sou mais o brinquedo preferido. E com as lágrimas, não sou o mais divertido.

Deixei as brincadeiras para trás e sentei no jardim, estou esperando alguma criança me achar, me cuidar, e ser mais uma vez... um bom companheiro.Jamais falhei em ser bom companheiro.Espero alguém que me de valor.

Não pise em mim!

Um dia fui surpreendida por uma formiga.

Naquele impulso inconsciente e maligno , eu ia matar a bichinha, mas ela gritou!

-“Eeeeeeeei! Não pise em mim!”

Estarrecida, parei e fui procurar da onde vinha aquela voz fininha e um tanto apavorada.

Lá estava ela, era uma formiga dessas normais, não entendo de formigas, apenas sei que era daquelas que a gente tem na nossa casa.

Abaixei-me curiosa para falar com a formiguinha, fiquei de cócoras, cerrei os olhos, ajeitei meus óculos e disse:

-Oi, me desculpe!

Mais uma vez pra minha surpresa ela respondeu:

-Que mané desculpa! Desculpa nada, você já estraçalhou metade da minha família... E olha que nós somos operárias renomadas! Carregamos ‘n’ vezes o nosso peso! Isso é um absurdo! Você acha só porque é grande pode sair pisando nos outros?

-Eu não sabia que estava causando tantos problemas... Bem, até sabia, mas pensei que vocês não tivessem laços e que se quer pensavam!

(Acho que fui um pouco ignorante pra dizer a verdade, pobre formiga...)

-Ah! Ainda por cima é sonsa! Escuta aqui, já chega de ficar pisoteando minhas amiguinhas!Temos o orgulho formicídio e eu estou aqui representando a nossa classe que é afetada por esse problema discriminatório sobre os insetos de baixa periculosidade!

Apareceram outras formigas que entraram em formação para desenharem mosaicos que formavam palavras e frases para que eu lesse.

-Vocês são mesmo organizadas, né ?

-Como pode ver, sim. E quero aqui exprimir toda a nossa insatisfação com a sua atitude agressora e incompreensiva com a nossa espécie... Só queremos dividir o espaço com vocês humanos, e ainda lhes fazemos o favor de limpar suas migalhas soltas e restos de consumo...E vocês... Não passam de ingratos!

Me senti atingida.

-O que posso fazer para reverter a minha situação, mudar minha imagem em relação a vocês?

-Bem, nós gostaríamos de pisar em metade de sua família para você sentir o mesmo, mas isso custaria muito a todas nós já que teríamos de convocar nossas companheiras de outras jurisdições... Então tenho aqui de pronto, uma declaração feita pela ONF- Organização das Nações Formigas, com assinatura do conselho de segurança para que você, humana, assuma pelos crimes de formiguicídio, agressão e invasão de propriedade privada.

-Nossa, e como vou ser punida?

-Vai ter que ceder toda migalha de bolo, doces e afins para nós, além de outros alimentos para o reestabelecimento do formigueiro. Além disso, também terá que garantir proteção efetiva da nossa casa, já que por tantas outras vezes você nos varreu quintal à baixo... Entre outras ações de auxilio a nossa causa. O descumprimento da ordem implica em ataques pelo nosso batalhão vermelho, podendo lhe causar choque anafilático e morte.

-Ui! Vejo que não estão para brincadeiras! Assino, e juro não mais pisar em quem me ajuda sem eu saber...Não piso mais na família, nem nos amigos, nem em ninguém.Vou valorizar o trabalho e a organização...Prometo ser mais atenta com os menores e os menos perigosos e tenho dito!