segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Béia

Eis que esta senhora que vou descrever é uma das figuras mais emblemáticas desta minha terrinha. Luzia Maria da Conceição- pouco se sabe se este é o seu nome de fato - desde que se conhece por gente é chamada por Béia, a senhora de idade também duvidosa, mas aproximada em 88 anos, sempre me pareceu literária de mais.

Filha de um trabalhador da linha férrea, que às vezes atacava de jogador de futebol e de mãe lavadeira, viveu em Pau Grande na época do Garrincha. Nunca se casou, diz-se virgem, mas conta que ao dançar bem juntinho no baile já descobriu “o calor” de um homem.

Negra, magra, cabelo duro e sempre pintado, olhos marejados pela catarata, ela tem em si um caráter interessantíssimo. Tampando a boca envergonhada com o sorriso e com dentes maltratados pelos doces da terra, ela vem contar sobre um ou outro que morreu e ela foi ao enterro- porque pra ela ainda é época dos grandes eventos serem os velórios! É como uma viagem ao passado, ela ainda diz que esse morto ”abotoou o paletó” e indigna-se pelos parentes nem chorarem muito. Além de papa-defunto a senhora é engraçada com o linguajar simples coloquial e a fala rápida - quando aqui cheguei, mal podia entender as coisas que ela dizia. Ela deixa de herança para aqueles que convivem com ela alguns bordões como “eu mesmo acho” quando dá sua opinião,quando diz que fulano é “nego preto que nem eu” não é por mal e sim percebendo a mudança na posição do negro na sociedade, quando fala aos homens velhos os trata por “sinhô”, e nunca diz tchau e sim um saudoso “ ’té logo”.Se fico muito tempo sem ir prosear com ela, a Béia logo fica brava, diz sem pudor que sou “filha-da-puta, cachorra que não liga pra eu!”.

Por falar em cachorro, ela já teve muitos : o Salgueiro, Pingo, Beethoven... Todos eram vira-latas, os atuais são o Nú e o Sem Calças.Me pergunto se com foi o tempo que ela criou essa liberdade para nomear seus animais. Já criou galinhas, mas parou porque já não tem mais idade pra mexer com aves ariscas que nem as vadias galinhas.

Tem um quintal farto de árvores frutíferas, freqüentemente aparece para dar a gente jabuticabas , mamão, banana da terra, laranja lima, limão galego e pra comer no almoço tem a própria mandioca e as folhas de louro pra temperar o feijão. E como cuida das plantas e da terra! Ela areja a terra com a enxada, capina aonde tem mato, rega as que dão flores.Que vivaz!Eu nem aos 20, teria tamanha disposição. Dorme cedo e acorda cedo. Escureceu e já não se tem mais noticia da Béia, e antes de amanhecer ela já está de pé.

Vive sozinha na sua casa e como toda senhora, tem medo que aconteça algo durante a noite. Receio de que entrem no quintal para roubá-la ou que algum bandido lhe faça mal. Tem medo de morrer sozinha e padecer despercebida. Felizmente, para lhe suprir as demandas de solidão tem o Bolinha, um vizinho que ajuda quando tem “serviços de homem”, como obras e reparos na casa. Tem a Glória, cuja intenção é duvidosa, mas sempre ajuda com as pendências da casa como as compras e também lhe pinta o cabelo, além de levar o Everton, o seu neto , pra que alegre o ambiente da velha. E claro, tem a minha família, que por mais de 30 anos acompanha a trajetória da negra Béia, somos vizinhos desde que a minha avó comprou o terreno aqui de casa.

E religião?Não tem uma só. Essa senhora está em todas! Se a chamam pro terreiro, ela vai. Se tiver show evangélico na praia, ela vai. Se a missa é na paróquia com o padre italiano, ela vai! No quesito respeito e fé, ela é vanguardista pra alguém da sua idade.

Seu maior defeito e maior qualidade é ser muito boa pessoa. Eis que um dia, ou melhor, uma madrugada seus vizinhos e parentes de consideração, estavam fazendo uma festança desde as duas da tarde daquele sábado. A festa estava tão intensa e a pegação tão avassaladora que uns pombinhos derrubaram o muro de concreto pronto que separava os terrenos! Para susto tremendo da nossa Béia, que já havia se recolhido desde as sete da noite, o estrondo foi colossal! Um ano depois e o muro ainda está a baixo porque ela fica sem jeito pra cobrar os taradões da festa.Pobre Béia.Eu a amo.

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